terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Poder constituinte

1. Espécies de poder constituinte

De acordo com a classificação dicotômica, temos:

  • poder constituinte originário

  • poder constituinte derivado

    • reformador (art. 60, CF/88)

    • revisor

    • decorrente

      • institucionalizador

      • reformador

Obs.: existe também uma classificação tricotômica. Para ela, haveria um poder constituinte misto, que poderia alterar cláusulas pétreas através de reforma constitucional submetida a plebiscito ou referendo. Mas essa proposta foi rejeitada nos debates constituintes em 1988.


2. Poder constituinte originário

É o poder de elaboração de uma Constituição. Ex.: a Constituição brasileira promulgada em outubro de 1988.

Se for a primeira Constituição de um país, será chamado poder constituinte originário fundacional ou histórico. Se não o for, será chamado de pós-fundacional ou revolucionário. Assim, a Constituição Imperial de 1824 é expressão do poder constituinte originário fundacional. Todas as Constituições brasileiras posteriores são revolucionárias ou pós-fundacionais(2).

Obs.: para o direito, revolução não significa luta armada, mas apenas ruptura com o ordenamento jurídico anterior.

O poder constituinte originário não está subordinado a nenhuma norma anterior, pois não é um poder jurídico, e sim político. Um poder jurídico retira sua força da norma, o que não é o caso (pelo menos, numa visão positivista).

Se não retira sua força de uma norma jurídica, o poder constituinte originário não pode ser analisado sob o aspecto da legalidade, mas tão-somente da legitimidade. A legitimidade pode ser vista sob dois ângulos:

  • subjetivo: para ser legítimo, é necessário que o exercício desse pdoer coincida com sua titularidade. O titular do poder constituinte originário é o povo (ou, para alguns, a nação). Se o exercício é usurpado do titular, passa a ser ilegítimo. Para que o exercício corresponda à titularidade, deve a Constituição ser elaborada por uma assembléia constituinte eleita para essa fim.

  • objetivo (Canotilho): a assembléia constituinte não tem liberdade de inserir qualquer norma na Constituição, mas apenas aquelas que correspondam à idéia de justiça presente na comunidade por ela representada.

O poder constituinte originário tem como características(2):

  • inicialidade: inaugura um novo ordenamento jurídico.

  • autonomia: porque cabe a ele escolher a idéia de direito a ser consagrada.

  • incondicionamento: não está sujeito a limitações materiais ou formais. É por isso que não cabe falar em direito adquirido em face de norma constitucional advinda do poder originário(2).

Essas características estão mais ligadas ao positivismo. No entanto, é interessante notar que a teoria do poder constituinte originário teve início com o Abade Sieyés, que era jusnaturalista. Para ele, o poder constituinte era (características):

  • incondicionado juridicamente (mas condicionado ao direito natural)

  • permanente (porque não se esgota em seu exercício)

  • inalienável (porque sua titularidade não pode ser transferida).

2.1. Efeitos da nova Constituição sobre a anterior

Quando uma nova Constituição é promulgada, ficam revogadas todas as normas da Constituição anteriores? Ou permanecem aquelas que não forem incompatíveis com as novas disposições?

A doutrina é divergente. Há doutrinadores que entendem aplicável a teoria da desconstitucionalização. Essa teoria parte da distinção entre normas materialmente constitucionais e normas formalmente constitucionais. (Apenas para relembrar, pois já vimos essa matéria: normas materialmente constitucionais são aquelas essencialmente constitucionais, ou seja, as que tratam dos direitos fundamentais, estrutura do Estado e organização dos Poderes. Normas formalmente constitucionais são todas as demais, cuja inserção na Constituição é feita tão-somente para conferir-lhe maior garantia e estabilidade).

Para a teoria da desconstitucionalização, uma nova Constituição revoga as normas materialmente constitucionais da Constituição anterior. No entanto, as normas formalmente constitucionais que não forem incompatíveis são recepcionadas como leis. Assim se dá na Constituição de Portugal (art. 290).

No Brasil, a doutrina é divergente. Para José Afonso da Silvia, se a nova Constituição não reproduz as normas anteriores é porque quis desqualificá-las como normas jurídicas (e não apenas como normas constitucionais). Pontes de Miranda, porém, é exemplo de autor que defende a desconstitucionalização.

2.2. Efeitos da nova Constituição sobre a legislação anterior

a) Recepção

Quanto às leis anteriores que não sejam incompatíveis com a nova Constituição, dá-se o fenômeno da recepção, que, segundo Norberto Bobbio, é "um ato jurídico com o qual um ordenamento acolhe e torna suas as normas de outro ordenamento, onde tais normas permanecem materialmente iguais, mas não são mais as mesmas com respeito à forma, no sentido de que elas são válidas não mais com base na norma fundamental do velho ordenamento, mas com base na norma fundamental do novo"(3).

Se a nova Constituição altera o procedimento ou a competência para determinada matéria já regulada pela lei anterior, essa lei é recepcionada mas com o status da nova ordem constitucional. Assim, se determinada matéria era regulada por lei ordinária e a nova Constituição estabelece que será regulada por lei complementar (alteração de procedimento), a lei ordinária anterior é recepcionada com status de lei complementar e só poderá ser alterada por lei complementar; se a lei anterior era de competência de um órgão e a nova Constituição altera a competência para outro órgão (alteração de competência), a lei anterior é recepcionada como originada deste novo órgão e só atos deste novo órgão é que podem alterar a norma(2).

b) Não recepção

Quando a lei anterior é incompatível com a nova Constituição, dá-se a não recepção. A doutrina diverge quanto aos seus efeitos, hevendo posicionamentos no sentido de que se trata de:

  • revogação (entendimento do STF, Luis Roberto Barroso e Marcelo Neves)

  • inconstitucionalidade (entendimento do Min. Sepúlveda Pertence e J. J. Gomes Canotilho).

Para Luis Roberto Barroso e Marcelo Neves, a nova Constituição revoga a legislação anterior. Assim, não cabe controle de constitucionalidade concentrado, só podendo ser argüída em Recurso Extraordinário. É o entendimento não unânime do Supremo Tribunal Federal (ADIn 2. Vale a pena ler o inteiro teor desta decisão).

A doutrina não acolhida pelo STF, entende tratar-se de inconstitucionalidade, do que decorreria a possibilidade de controle concentrado.

2.3. Conflito entre normas constitucionais advindas do poder originário

Quando normas constitucionais estão em conflito e ambas são oriundas do poder originário, propõem-se as seguintes soluções(2):

  • impossibilidade de declaração de inconstitucionalidade. Tese acolhida pelo STF (ver, p. ex., ADIn 815, em cuja ementa podemos ler: "A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras é incompossivel com o sistema de Constituição rígida"). Neste caso, só pode haver inconstitucionalidade de norma constitucional se esta última tiver sido elaborada pelo poder constituinte derivado.

  • possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de regras constitucionais em face de princípios constitucionais. Deve-se verificar se a regra é norma especial em relação ao princípio. Se o for, norma especial derroga norma geral. Se não o for, prevalece o princípio, pois este possui hierarquia axiológica superior à regra (por exemplo, na contradição entre o art. 100 da CF e o art. 33 do ADCT). Veja-se o ensino de Celso Antônio Bandeira de Mello: "Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma regra. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumácia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra"(4). Trata-se do chamado critério hierárquico no sentido estático.

  • possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de regra formalmente constitucional em face de regra materialmente constitucional.

  • possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de norma constitucional em face de norma constitucional transcendente, entendida esta como meramente declaratória de direito ante-estatal ou pré-constitucional (diria eu, direito natural), como por exemplo a afirmação da dignidade da pessoa humana.

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3. Poder constituinte derivado reformador

É o poder de alterar a Constituição. É derivado porque decorre de autorização dada pelo poder constituinte originário (art. 60, §§2º, 3º e 5º, CR).

3.1. Limitações

Estão previstas no importante art. 60 (cai com muita freqüência nas provas objetivas):

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

§ 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.

§ 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§ 3º - A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.

§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

§ 5º - A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.

Teoricamente, quatro limitações são impostas ao poder reformador:

  • limitações temporais

  • limitações circunstanciais

  • limitações formais (subjetivas e objetivas)

  • limitações materiais ou substanciais

a) limitações temporais

Impede a reforma da Constituição durante um determinado período de tempo, com a finalidade de assegurar que a Constituição adquira uma certa estabilidade. Ocorre, normalmente, nas constituições históricas(1). Existiu na Constituição Imperial de 1824, cujo art. 174 prescreveu a inalterabilidade daquela Constituição no período de quatro anos(2). Na CR/88 não há limitação temporal para a reforma (houve, sim, para a revisão - art. 3º dos ADCT).

b) limitações circunstanciais

Dizem respeito a determinadas situações excepcionais e graves (estados de legalidade extraordinária), nas quais o poder constituinte poderia legislar sob o calor dos acontecimentos. Na CR aparecem no art. 60, §1º: intervenção federal, estado de defesa, estado de sítio.

c) limitações formais

Também chamadas de limitações processuais, procedimentais ou implícitas. Subdividem-se em duas espécies(1):

  • limitações formais subjetivas: relacionadas à competência para a iniciativa da alteração da CR. Art. 60, I a III.

  • limitações formais objetivas: relacionadas ao procedimento em si. Art. 60, §2º.

Limitações formais subjetivas. Como nossa Constituição é rígida, não são todos os competentes para a iniciativa de leis que serão competentes para a iniciativa de emendas à Constituição (com exceção do Presidente da República). Há controvérsia sobre a possibilidade de iniciativa popular de emenda à Constituição:

  • pelo cabimento, defendido por José Afonso da Silvia. Deve ser feita uma interpretação sistemática da Constituição e, por analogia, ser aplicado o art. 61, §2º. Assim, se é o povo o titular do poder constituinte, e se o povo pode propor emenda através de seus representantes, também o pode mediante iniciativa popular. É entendimento minoritário.

  • pelo descabimento, entendimento do STF. O art. 60 é norma excepcional, e normas excepcionais devem ser interpretadas restritivamente.

Limitações formais objetivas. Previstas no art. 60, §2º, §3º e §5º. Quanto ao §3º, atentar que a promulgação não é realizada pela mesa do Congresso Nacional, e sim as duas mesas: a da Câmara e a do Senado, pois são situações diferentes. Quanto ao §5º, não se trata de limitação temporal. Notar que a sessão legislativa se inicia no dia 1º de fevereiro quando se tratar da primeira sessão da legislatura; e no dia 2 de fevereiro, nas demais sessões legislativas. Assim, se uma matéria for rejeitada em janeiro de um ano, poderá ser reproposta no mês seguinte(1).

Cabem algumas observações quanto ao mencionado artigo:

  • distinguir entre legislatura, sessão legislativa e período legislativo. A legislatura é o período de 4 anos, correspondentes ao mandato de um deputado (art. 44, p. único). A sessão legislativa é o período de um ano (art. 57), ou seja, cada legislatura possui quatro sessões legislativas. O período legislativo é de seis meses, ou seja, cada sessão legislativa ordinária está dividida em dois períodos legislativos (de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 01 de agosto a 22 de dezembro).

  • também a Medida Provisória só pode ser reapresentada na sessão legislativa seguinte (art. 62, §10). Mas, aqui, não cabe confundir reapresentação com prorrogação, pois esta última é automática, uma vez por 60 dias.

  • um Projeto de Lei Ordinária pode, sim, ser reapresentado na mesma sessão legislativa, mas é necessário que seja subscrito pela maioria absoluta dos membros da casa (art. 67).

d) limitações materiais ou substanciais

Manifestam-se através das cláusulas pétreas. Alguém poderia questionar se a existência das cláusulas pétreas não seria antidemocrática, uma vez que retira do povo a possibilidade de alterar a Constituição. Assim, uma maioria momentânea (digamos, a de 1988) impediria gerações futuras de alterar certas normas constitucionais.

Marcelo Novelino responde a esse questionamento dizendo que a rigidez da Constituição cria uma tensão apenas aparente entre o constitucionalismo e a democracia. O constitucionalismo tem por finalidade a proteção de direitos e de metas a longo prazo; a democracia tem por finalidade a vontade da maioria. Nem sempre, porém, a vontade da maioria prevalece, pois a Constituição pode vedar alterações mesmo que sejam realizadas pela maioria. Maiorias momentâneas não podem fazer sua vontade prevalecer sobre a minoria, e é aqui que se perceberia que o constitucionalismo está a serviço da democracia(1).

Para que as cláusulas pétreas sejam legítimas, não basta que estejam na Constituição. Devem estar associadas à chamada reserva de justiça. Não é qualquer coisa que o poder constituinte afirme ser imutável que será considerada cláusula pétrea. Exemplo histórico é o da proibição de alteração do status da escravidão na Constituição Americana: em sua origem, normas sobre escravidão não poderiam ser alteradas (eram cláusulas pétreas).

Para ser considerada legítima (dentro da reserva de justiça), a cláusula pétrea deve assegurar:

  • o procedimento democrático (por exemplo, o voto direto, secreto, universal, periódico)

  • a autonomia e a igualdade entre os indivíduos.

O art. 60, §4º, prevê as seguintes limitações materiais:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.



A forma federativa do Estado é considerada pelo STF como princípio intangível (importante para questões da CESPE). O Supremo julgou a ADI 939/DF, em que se analisava a criação do I.P.M.F. (atualmente CPMF) em que se estabelecia exceção ao princípio da imunidade tributária recíproca (art. 150, VI, "a"). O STF entendeu que esse princípio é cláusula pétrea, por decorrer da forma federativa adotada pela Constituição, pois é uma forma de garantir a autonomia dos entes federativos.

Quanto ao voto, sua obrigatoriedade não é cláusula pétrea.

O tema dos direitos e garantias individuais é o mais polêmico no tocante às limitações materiais.É importante saber que a cláusula pétrea não significa a imutabilidade literal de um dispositivo, mas apenas a proteção ao seu núcleo essencial. Veja-se, portanto, que os direitos e garantias individuais (inc. IV) não gozam da intangibilidade própria da forma federativa do Estado (inc. I). O núcleo essencial é o que confere a identidade material da Constituição.

Neste contexto, há vários posicionamentos doutrinários. Para entendê-los, precisamos lembrar que a Constituição trata direitos fundamentais como gênero, cujas espécies seriam os direitos individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e polícitos. Assim:

  • fundamentais

    • individuais

    • coletivos

    • sociais

    • nacionalidade

    • políticos



Alguns autores defendem que todos os direitos fundamentais (englobando direitos individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e políticos) seriam cláusulas pétreas, e não apenas os direitos e garantias individuais. O Min. Carlos Velloso, p. ex., já se manifestou neste sentido (ADIn 939-07 )(7).

Há também o entendimento de Paulo Bonavides e Ingo W. Sarlet, para os quais seriam cláusulas pétreas os direitos individuais e os direitos sociais porque estes são imprescindíveis para a plena realização dos direitos individuais.

O Min. Gilmar Mendes, por seu turno, entende que somente os direitos e garantias individuais são cláusulas pétreas, porque somente eles protegem a liberdade.

Para Marcelo Novelino, o direito será cláusula pétrea dependendo do grau de proteção da dignidade da pessoa humana. Esta é diretamente protegida através de direitos ligados a dois valores: liberdade e igualdade (respectivamente, direitos individuais e direitos sociais). Quanto aos direitos sociais, só devem ser considerados cláusulas pétreas os direitos relativos ao mínimo existencial (direitos indispensáveis a uma vida humana digna).

E o posicionamento do STF? O Supremo costuma limitar as cláusulas pétreas aos direitos e garantias individuais, mas estes não se restringem ao art. 5º: estão espalhados por todo o texto constitucional. Por exemplo, o princípio da anterioridade eleitoral previsto no art. 16 foi interpretado como cláusula pétrea, quando da análise da EC nº 52 não por ser direito político, mas por ser uma garantia individual do cidadão eleitor. Outro exemplo: o princípio da anterioridade tributária do art. 150, III, "b" foi considerado uma garantia individual do cidadão contribuinte (ADI 3685/DF).

Outra questão é a subdivisão entre cláusulas pétreas explícitas e implícitas. Exemplos de cláusulas pétreas implícitas: os fundamentos da República previstos no art. 1º; também o próprio art. 60, embora alguns autores falem em dupla revisão (ou revisão de duplo grau), que consiste em uma alteração do art. 60 e, posteriormente, da própria cláusula pétrea. Isso é visto pela maioria como fraude ao poder constituinte originário.

Questão controvertida também é sobre a possibilidade de alteração da forma republicana e do sistema presidencialista. Alguns entendem serem eles cláusulas pétreas. Guilherme Peña de Moraes, Fábio Konder Comparato(2) e Ivo Dantas(1), por exemplo, justificam esse entendimento no art. 2º do ADCT, segundo o qual:

Art. 2º. No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País.



Como o plebiscito já foi realizado, esse autor entende que o povo transformou esses aspectos em cláusula pétrea. Marcelo Novelino entende justamente o contrário: se o Constituinte originário não petrificou é porque tais aspectos não retratam a identidade material da Constituição. Assim, forma republicana e sistema presidencialista podem ser objeto de nova consulta popular.

Outro assunto em debate é a possibilidade de se alegar direito adquirido em face de norma constitucional derivada (emenda ou revisão). Duas as correntes(2):

  • possibilidade de invocação de direito adquirido perante emenda e revisão à Constituição: direito adquirido é garantia individual, protegido, portanto, pelo art. 60, §4º, IV.

  • impossibilidade de invocação de direito adquirido perante emenda e revisão à Constituição: a garantia estabelecida no art. 5º, XXXVI se destina ao legislador ordinário e não ao legislador constituinte, até mesmo porque se refere a "lei". Este é o entendimento do STF (ver RE nº 140.894 ) e do STJ (ver REsp nº 506)


4. Poder constituinte derivado revisor

O processo de revisão é mais simples do que o de reforma (art. 3º, ADCT): decisão por maioria absoluta, em única sessão unicameral. Diga-se de passagem que sessão unicameral e sessão conjunta não são situações idênticas. Na sessão unicameral, não existe diferença entre deputados e senadores; seus votos são somados em conjunto (513 deputados + 81 senadores = 594 votos. Na revisão, era exigido, assim, 298 votos sem distinguir o pedigree do voto). Na sessão conjunta, o voto é feito no plenário do Congresso, mas os votos são computados separadamente. Por exemplo, para derrubada de veto do Presidência se exige maioria absoluta, que neste caso será 257 deputados + 42 senadores. Assim, se 500 deputados e 10 senadores votam pela derrubada do veto, o veto não será derrubado porque não foi aprovado pela maioria dos senadores(1).

É de se perguntar se poderia haver emenda ao art. 3º do ADCT no sentido de se permitir a convocação de nova revisão. Manoel Gonçalves Ferreira Filho entende em sentido positivo, já que não haveria qualquer limitação jurídica neste sentido (ademais, a limitação é exceção e por isso deve ser interpretada restritivamente). Contudo, a posição majoritária e acolhida pelo STF é no sentido negativo, ou seja, pela impossibilidade de convocação para nova revisão (ver ADIn 981 ).

5. Poder constituinte derivado decorrente

5.1. Espécies

O poder constituinte derivado decorrente é o responsável pela criação e alteração das Constituições estaduais. Vide arts. 25 da CF/88 e art. 11 dos ADCT. Este último reza:

Art. 11. Cada Assembléia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios desta.


O artigo 11 do ADCT estabelece a possibilidade de elaboração da constituição estadual. Implicitamente, também confere aos Estados o poder de alterar a própria constituição. Daí que se pode distinguir duas espécies de poder constituinte derivado decorrente:

  • poder constituinte derivado decorrente institucionalizador: é o que cria a Constituição estadual

  • poder constituinte derivado decorrente reformador: é o que altera a Constituição estadual(2)

5.2. Limitações

Com as constituições estaduais não se opera a recepção própria das leis. Havendo uma nova Constituição da República, necessariamente os Estados devem fazer novas constituições em razão do princípio da simetria constitucional.

Embora o mencionado artigo se refira a poderes constituintes, trata-se na verdade de poder constituído, decorrente da Constituição da República. Não se trata de um poder inicial, autônomo e incondicionado como o poder constituinte originário, mas encontra limitações na própria CR. Tais limitações dizem respeito aos seguintes grupos de princípios:

  • princípios constitucionais sensíveis

  • princípios constitucionais estabelecidos

    • limitações expressas

      • regras mandatórias

      • regras vedatórias

    • limitações implícitas

    • limitações decorrentes

  • princípios constitucionais extensíveis

a) Princípios constitucionais sensíveis

São princípios que, violados, acarretam a intervenção federal nos Estados. Estão elencados no art. 34, VII, CR:


Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

(...)

VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;

b) direitos da pessoa humana;

c) autonomia municipal;

d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.

e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.


Os princípios do inc. VII se referem à essência da organização do Estado brasileiro. Violados, será decretada a intervenção pelo Presidente da República (art. 84, X), condicionada ao provimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva promovida pelo Procurador-Geral da República diante do STF, nos moldes do art. 36, III:


Art. 36. A decretação da intervenção dependerá:

(...)

III - de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal.



b) Princípios constitucionais estabelecidos

Estão previstos ao longo da Constituição e se subdividem em limitações expressas, implícitas ou decorrentes.

As expressas estão postas textualmente na CR. Estão contidas em regras mandatórias ou regras vedatórias. As regras mandatórias são aquelas que impõem ao Estado o dever de fazer (p. ex., o art. 37, caput). As regras vedatórias proíbem que o Estado faça algo (p. ex., art. 19, que veda ao Estado estabelecer cultos religiosos).

As implícitas são deduzidas de outras normas constitucionais. Por exemplo, os arts. 21 e 22 estabelecem competências da União o que, implicitamente, acarreta limitação aos Estados e Municípios para que tratem das matérias ali elencadas.

As decorrentes são aquelas que defluem do sistema constitucional adotado. Por exemplo, do princípio federativo decorre o dever de tratamento igualitário aos entes federativos(1).

c) Princípios constitucionais extensíveis

Foram praticamente eliminados da CR/88. São princípios que a CR impõe como limitações à organização da União e se extendem aos Estados. Só um princípio permanece hoje, insculpido no art. 93, V, que limita os subsídios dos membros do STF e STJ e se extende aos desembargadores dos Estados.

5.3. Normas de reprodução e normas de imitação

Tendo em vista as várias limitações ao poder constituinte derivado decorrente (institucionalizador ou reformador), as diversas CEs costumam repetir normas contidas na CR. Algumas são de repetição obrigatória (normas de reprodução) e outras facultativa (normas de imitação). É aqui que entra "a discussão sobre o alcance do poder jurídico da União de impor, ou não, às demais pessoas estatais que integram a estrutura da federação, o respeito incondicional a padrões heterônomos por ela própria instituídos como fatores de necessária aplicação, ou não" (STF, ADI 216 ).

Por exemplo, o STF decidiu que o art. 102, I, "b" e "c" da CR não é de repetição obrigatória pelas CEs. "Em conseqüência, haveria a possibilidade destas atribuírem foro especial por prerrogativa de função, mesmo que não exista simetria entre as autoridades estaduais e as autoridades federais"(2). Vide STF ADI 2587. Trata-se, porém, de matéria não pacificada, veja: STJ, HC 11.939.

6. Poder derivado decorrente reformador: limitação imposta pela CF

Pode uma emenda a Constituição Estadual ser declarada inconstitucional em face da própria CE? O TJ-RJ já teve oportunidade de examinar essa matéria, decidindo pela inadmissibilidade(2) por ausência de uma condição da ação: no RI nº 45/99, o TJ-RJ decidiu pela impossibilidade jurídica do pedido de declaração de inconstitucionalidade de emenda a constituição estadual por contrariar a própria CE. Tal decisão acolheu o Parecer da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, segundo o qual "exsurge inviável a aferição da constitucionalidade de emenda ou revisão à Constituição do Estado em face da própria Carta Estadual, em razão da inexistência de hierarquia jurídica entre tais dispositivos, ambos frutos do poder constituinte derivado; diferentemente da questão em nível federal, quando, em caso análogo, se estabelece o confronto entre normas oriundas do poder constituinte originário e disposições normativas do poder constituinte derivado, com indiscutível primazia do primeiro, em face da característica ilimitada daquele poder que institui o Estado".

Vemos, assim, que a reforma de uma CE está limitada pela CR. Diga-se mais: ainda que tal limitação não tenha sido prevista na Constituição Estadual. Por exemplo, o art. 111 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro não estabelece as limitações materiais ao poder de reforma estadual, mas como decorrentes do próprio poder constituinte originário, são de observância obrigatória. No entanto, o procedimento para a alteração da CE não é necessariamente simétrico ao da CR(2).

7. Alteração informal: mutação constitucional

As limitações formais não têm o alcance de vedar a alteração informal da Constituição. Esta se dá quando não há alteração do texto, mas do sentido da Constituição, mediante nova interpretação ou novos costumes constitucionais. Este tema é estudado pela doutrina sob o nome de mutação constitucional. Veja também essa postagem.

Bibliografia



(1) Marcelo Novelino. Aula proferida em 01/02/2008, no curso regular do LFG (antigo IELF).

(2) Guilherme Peña de Moares, Direito constitucional: teoria da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

(3) Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Universidade de Brasília, 1997, 10a ed.

(4) Celso Antônio Bandeira de Mello, Atos Administrativos e direito dos administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.

(5) Alzemeri Martins e Bárbara Camardelli, Antinomia entre normas constitucionais. Download aqui.

(6) Ronaldo Guimarães Gallo, Mutação constitucional . Teresina: Jus Navegandi, 2003.

(7) Alexandre de Moraes, Direito constitucional. São Paulo: Editora Atlas, 2006.

Resumo

1. Espécies de poder constituinte. Originário. Derivado: reformador; revisor; decorrente - institucionalizador; reformador.

2. Poder constituinte originário. Histórico. Revolucionário. Poder político. Legitimidade: subjetiva e objetiva. Características: inicialidade, autonomia e incondicionamento (não direito adquirido). Abade Sieyés: incondicionado juridicamente, permanente, inalienável. 2.1. Efeitos da nova Constituição sobre a anterior. Teoria da desconstitucionalização. 2.2. Efeitos da nova Constituição sobre a legislação anterior. Recepção: procedimento e competência. Não recepção: efeitos: revogação (não controle concentrado) x inconstitucionalidade (sim controle concentrado). 2.3. Conflito entre normas constitucionais advindas do poder originário. Não inconstitucionalidade x inconstitucionalidade de regras perante princípios x inconstitucionalidade de regra formalmente em face de regra materialmente x inconstitucionalidade de norma constitucional em face de norma constitucional transcendente.

3. Poder constituinte derivado reformador. 3.1. Limitações. Temporais. Circunstanciais: estados de legalidade extraordinária. Formais: subjetivas (iniciativa) e objetivas (procedimento). Subjetivas: iniciativa popular de emenda: cabimento x descabimento. Objetivas: não Mesa do Congresso; legislatura, sessão legislativa e período legislativo. MPs e LOs. Materiais. Cláusulas pétreas: constitucionalismo e democracia; reserva de justiça: procedimento democrático e autonomia/igualdade entre os indivíduos. Forma federativa: princípio intangível. Direitos e garantias individuais: núcleo essencial, identidade material da Constituição; todos os direitos fundamentais x individuais e sociais x direitos e garantias individuais esparsos na Constituição; expressas e implícitas, não revisão de duplo grau. Forma republicana e sistema presidencialista: cláusula pétrea (mai). Direito adquirido em face de emenda: existe x não existe.

4. Poder constituinte derivado revisor. Maioria absoluta. Sessão unicameral: não sessão conjunta. Emenda ao art. 3º ADCT e nova revisão: possibilidade x impossibilidade.

5. Poder constituinte derivado decorrente. 5.1. Espécies. Institucionalizador (explícito) e reformador (implícito). 5.2. Limitações. Não recepção: simetria. Poder constituído. Limitações: princípios constitucionais: sensíveis, estabelecidos, extensíveis. Sensíveis: intervenção. Estabelecidos: limitações expressas, implícitas e decorrentes. Limitações expressas: regras mandatórias e regras vedatórias. 5.3. Normas de reprodução e normas de imitação.

6. Poder derivado decorrente reformador: limitação imposta pela CF. Inconstitucionalidade de emenda à CE em face da própria CE: impossibilidade, ausência de poder originário, TJ-RJ. Limitações circunstanciais e materiais da CF.

7. Alteração informal: mutação constitucional. Mesmo texto, altera sentido.

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